Resposta a “O Estado de S. Paulo”, para quem um espaço de diálogo entre povos tradicionais e o Estado seria desperdício de dinheiro público
Por Carlos dos Santos, em texto recolhido por Cibelih Hespanhol | Imagens: Sarah Gehren (acima) e João Roberto Ripper (capa)
No dia 16 de maio, quando O Globo publicou uma matéria anunciando que Temer irá rever os últimos atos de Dilma, O Estado de S. Paulo resolveu ir além da mera notícia: tomou sua própria parte na revisão de um destes decretos.
O
editorial “Dilma e os povos tradicionais” defende o fim do Conselho
Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, reivindicação da Comissão
Nacional desde sua Constituição, e enfim instituído através do Decreto nº 8750 de 9 de maio. Para o Estadão, um espaço de diálogo entre povos tradicionais e o Estado seria desperdício de dinheiro público. Segundo o jornal,
estes povos nem mesmo existem. E participação popular, para o Estadão, é
se dar por satisfeito com a representatividade do Congresso.
Sim,
esta refinada repetição de ignorâncias é ordenada em palavras assinadas
como a opinião expressa do veículo, que assim zomba da Constituição Federal,
da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e de
outros tratados e dispositivos legais que reconhecem povos e comunidades
tradicionais como grupos que partilham de características específicas,
como ancestralidade, pertencimento, práticas e saberes, e violações
tantas, como mais esta violência simbólica em forma de editorial. O
Estadão também zomba da reivindicação popular por uma democracia radical
e participativa, tão nítida nos cartazes de “não me representa” que
marcaram as jornadas de junho. E parece rir do nosso desconforto em meio
à crise representativa do sistema político – ou quem assistiu a votação
do impeachment no Congresso pode mesmo concordar que os votos em nome
de Deus eram também em nosso nome?
Mas
a cereja do bolo do absurdo está nas últimas linhas do editorial. É
quando o Estadão diz que as resoluções do Conselho seriam utilizadas
como pressão política, “como se ali estivesse expressa a vontade da
sociedade brasileira”. E aí, me peguei pensando sobre brasis e brasis.
O
Grupo Estado certamente representa uma vontade da sociedade brasileira.
Qual vontade, e de qual sociedade, é o que nos cabe perguntar. Afinal, o
Brasil é brasis e brasis – e é principalmente um país que não se
conhece nem faz questão de se conhecer, enquanto esta ignorância
proposital for útil aos seus privilégios. Um Brasil que cerra as portas
da Casa Grande para que não o incomode o batuque e toda a vida da
Senzala.
É pelo Brasil do batuque, que tanto contribuiu para a identidade sociocultural de todo o Brasil, que aqui vai uma das notas de repúdio divulgadas em resposta ao Estadão. Porque os povos tradicionais, além de existirem, estão unidos em movimentos organizados – e se manifestaram através da reivindicação #PovosUnidosConselhoJá: a Via Campesina, a Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais do Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha, o Coletivo de Entidades Negras, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, além de pescadores, ciganos, pantaneiros, caiçaras, pomeranos, comunidades de fundo de pasto e quebradeiras de coco babaçu.
Quem fala aqui agora sobre si mesmo e um brasil desconhecido é Carlinhos dos Santos, pescador da Reserva Extrativista de Canavieiras, da Bahia. Na disputa de narrativas, que suas palavras sejam mais lidas do que aquelas que tudo isto negavam. Que o Brasil que em realidade nos forma, secreto feito raiz, por vezes sobressaia (Cibelih Hespanhol)
fonte: http://outraspalavras.net/